A literatura não tem como seu objetivo principal a informação, a despeito disso, produz conhecimento por ser um meio de comunicação que reflete a sociedade em que os textos são produzidos. Mesmo quando o texto retrata uma época diversa daquela em que se localiza o texto, os valores se mesclam. A literatura é um meio de diversão – embora algumas escolas insistam em transformar em instrumento de tortura. E no meio da diversão há muitas informações que são assimiladas de forma intencional e não intencional.
A produção literária contemporânea tem insistido fortemente na espiritualidade como temática[1], seja de forma ostensiva ou discretamente. O grande problema da inserção de valores do campo espiritual é quando isso é feito de forma que o leitor assimila o valor sem percepção real do que captou. A dificuldade de interpretar o texto é a grande vilã dessa história. Nesse sentido, a Análise do Discurso[2] contribui imensamente para fazer o leitor “cair na real”. O que ele leu de fato? O que está escondido entre as linhas do texto que, embora revelado, é tão obscuro?
Um exemplo interessante é encontrado em A Song of Ice and Fire[3] (As Crônicas de Gelo e Fogo – livro dois. Os trechos descrevem uma situação entre o rei – Lorde Stannis; o conselheiro do rei – meistre Cressen; e uma mulher feiticeira conselheira da esposa do rei – Melisandre. O rei, de forma inesperada, ridiculariza seu conselheiro em um banquete e se posiciona de acordo com os conselhos da feiticeira. O meistre Cressen, por sua vez, decide colocar veneno no vinho da feiticeira e partilhar a taça com ela. Ambos deveriam morrer ao ingerir o vinho, mas apenas ele morre, mesmo ela tendo partilhado da taça com ele. Interessante notar como a situação é tecida:
“Melisandre de Asshai[4], feiticeira, umbromante* e sacerdotisa de R’hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Melisandre, cuja loucura não se podia deixar espalhar para lá de Pedra do Dragão.” (p. 19)
“Como sempre, trajava vermelho dos pés à cabeça, com um longo vestido solto de seda esvoaçante, brilhante como fogo, com longas mangas pendentes e profundos cortes no corpete, pelos quais se entrevia um tecido mais escuro, vermelho-sangue, que usava por baixo. Tinha em torno da garganta uma gargantilha de ouro vermelho, mais apertada do que qualquer corrente de meistre[5], ornamentada com um único grande rubi. O cabelo não era de tom alaranjado ou cor de morango dos ruivos comuns, mas de um profundo acobreado lustroso que brilhava à luz das tochas. Até seus olhos eram vermelhos… Mas a pele era lisa e branca, imaculada, clara como leite. E era esguia, graciosa, mais alta que a maior parte dos cavaleiros, com seios fartos, cintura estreita e um rosto em forma de coração. Os olhos dos homens que a encontravam não se afastavam facilmente, nem mesmo os de um meistre. Muitos diziam que era bela. Mas não era. Era vermelha, e terrível, e vermelha.” (p. 21).
“Os olhos de Lorde Stannis estavam na sombra das suas pesadas sobrancelhas, sua boca, apertada, enquanto o maxilar trabalhava em silêncio. Rangia os dentes sempre que se zangava.
– Bobo – ele rosnou por fim –, a senhora minha esposa ordena. Dê o elmo a Cressen.
Não, pensou o velho meistre, este não é você, não é o seu jeito, sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso.” (p.23)
“Cressen tentou responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Sua tosse transformou‑se num terrível assobio agudo quando tentou inspirar. Dedos de ferro apertaram‑se em torno do seu pescoço. Quando caiu de joelhos, ainda balançava a cabeça, negando‑a, negando seu poder, sua magia, negando o seu deus. E os guizos tiniam nos chifres, cantando tolo, tolo, tolo, enquanto a mulher vermelha o olhava com piedade, e as chamas das velas dançavam nos seus olhos tão... tão vermelhos.” (p. 24).
Os trechos transcritos podem ser lidos em três minutos. Mas para entender o que, de fato, seu cérebro registrou leva algumas horas. Algumas questões podem produzir reflexão e encaminhar o leitor para algumas respostas:
- Na pág. 19, as descrições da feiticeira incluem a quem ela serve em sua visão espiritual. Em nenhum momento é dito um nome específico, apenas termos que identificam o tal ser. Esses termos fazem intertextualidade com informações que levam ao nome por trás dos termos: “Senhor da Luz” – a Bíblia associa a luz ao Deus que se revela por meio de suas páginas e aos seus seguidores, mas não é esse Deus uma vez que mais adiante associa à sombra. O termo, então, pode ser associado a “Satanás se disfarça em anjo de luz[6]”. “Fogo” e “chama” são elementos que se complementam para a ideia de inferno, assim como “sombra” e escuridão. De quem, partindo desses aspectos, o texto realmente faz referência?
- Nas págs. 21 e 24, o vermelho[7] é extremamente significativo, ainda mais pela insistência na cor. Para compreender a representatividade da cor nesse texto não basta deduzir, é preciso verificar que a cor toma diversos sentidos, dependendo do contexto, o vermelho pode significar a Coca-Cola, a Ferrari ou o diabo. Para entender o uso da cor aqui é preciso se reportar aos aspectos culturais e contextuais. Para buscar a ideia do texto, é interessante ler a seguinte explicação:
“Quando claro, representa o lado masculino e quando escuro, o feminino, noturno, secreto; e os mistérios da vida. Diz-se que ele seduz, encoraja e provoca; alerta, em forma de sinais - como os de trânsito -, proíbe e inquieta. Convida a prostíbulos, transgredindo proibições e atiçando pulsões sexuais e de instintos passionais. Acredita-se que uma mulher vestida de vermelho jamais seria vista como inocente. Representante da carne e da possessividade.
O vermelho simboliza o fogo central, o ser humano e a terra. Para a alquimia, é o homem universal e o sangue da imortalidade. O chamado vermelho sagrado é a cor da alma, do coração, do esoterismo e da ciência. Relacionado a mares e oceanos, nomeia-os sob o mesmo simbolismo - o ventre, no qual vida e morte se transmutam. Símbolo de vida e morte, é a cor da guerra e da devastação (fogo e sangue), e a cor da salvação (Cruz Vermelha)”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vermelho)
A associação com morte fica mais clara no contexto, porque há uma tentativa de assassinato e suicídio; e o conselho da mulher para o rei é que ele vá à guerra.
- O trecho da pág. 23 precisa ser entendido pelo contexto – a informação sobre a mulher leva a concluir que é discípula de Satanás, e a esse ser é atribuída a capacidade de possessão do corpo de alguém; a expressão “ranger de dentes” também contribui para o efeito de sentido, uma vez que essa é a expressão utilizada na Bíblia para descrever o estado dos que vão para o inferno - lugar de choro e ranger de dentes. Assim, quando o velho mestre pensa “este não é você, não é o seu jeito, sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso”, não seria uma sugestão de que o rei está possuído por um ser maligno?!
- No último trecho, da pág. 24, há a descrição da morte do velho. O veneno fez efeito nele, mas não fez efeito na feiticeira. O ponto máximo desse trecho é a declaração de poder sobre a morte atribuído ao ser maligno que é objeto da fé daquela mulher. O velho morre achando que o Diabo não tem poder, não existe, e a repetição da música do bobo da corte é expressa em “tolo, tolo, tolo”. Não estaria o texto aí deixando clara a tolice daquele que nega o que está bem na sua frente?! O que faz a sociedade atual diante da feitiçaria, da destruição dos valores sociais?! A resposta para essa última pergunta é: “Eu nego, eu não vejo...”.
Isso é só um pouco do que pode ser extraído dos trechos acima. Há muito mais... No próximo texto, pretendo abordar um pouco mais dessa questão da espiritualidade presente na literatura contemporânea.
[1] Tenho trabalhado em uma pesquisa sobre esse assunto e espero partilhar mais alguns textos aqui no blog.
[2] Análise do discurso ou análise de discurso é uma prática e um campo da lingüística e da comunicação especializado em analisar construções ideológicas presentes em um texto. (http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%A1lise_do_discurso)
[3] MARTIN, George R. R. A fúria dos reis; trad. Jorge Candeias. – São Paulo : Leya, 2011.
[4] Cidade portuária que faz fronteira com a Terra das Sombras. Cidade notável por exportar diversas mercadorias, dentre elas Obsidiana. Rumores contam que Feiticeiros, Arcanos e Bruxos atuam livremente em Asshai. (http://www.edenpop.com/literatura/dicionario-de-as-cronicas-de-gelo-e-fogo)
[5] Do inglês Maester, uma corruptela de Mestre (Master). Titulo para os academicos e estudiosos que se formam em diversas areas da ciencia e ocultismo. (http://www.edenpop.com/literatura/dicionario-de-as-cronicas-de-gelo-e-fogo)
[6] II Cor. 11.14
[7] A palavra “vermelho” tem sua origem no latim vermillus, que significa "pequeno verme", remetendo-se à cochonilha, inseto do qual é extraído o corante carmim utilizado em tintas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vermelho)
Basicamente você está dizendo que as ASOIAF possui em suas entrelinhas elementos satânicos? G.RR.MARTIN pode até ter utilizado de tais termos para demonstrar não claramente que Melissandre na verdade é maligna,mas não consegui entender se você ressaltou isso para demonstrar que de acordo com sua análise e opinião na verdade ASOIAF é uma obra de cunho satânico com o objetivo de manipular as pessoas por meio de linguagem subliminar.É isso que você quis mostrar?
ResponderExcluir