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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sem texto e sem contexto

Já se deparou com uma situação em que um assunto está em pauta e alguém faz um comentário totalmente “nada a ver”?! Foi exatamente isso que fez a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e membro da diretoria da Associação Internacional de Bioética ao dar sua opinião sobre um assunto que se tornou notícia em todo o mundo.

*Uma bibliotecária italiana de 57 anos e um aposentado de 70, casados há 21 anos, decidiram ter um bebê com óvulos doados, após anos tentando uma gravidez, sem sucesso. Há um ano e sete meses, nasceu o bebê. A corte de Turim (Itália) entendeu que eles são velhos demais e não têm condições de criar, por isso colocaram a criança para adoção. O caso repercutiu porque a discussão gira em torno dos limites da maternidade/paternidade utilizando as novas tecnologias. Os juízes alegaram que eles foram "egoístas e narcisistas" e que "Eles nunca pensaram sobre o fato de que a filha poderia ficar órfã muito jovem ou seria forçada a cuidar de seus pais idosos na idade em que os jovens mais precisam de apoio" – eu só não entendi porque esperar a criança ser gerada para expressar essa opinião... 

Diante da associação feita entre gravidez tardia e egoísmo, a tal professora sai com essa: "é um valor cristão sobre a reprodução". Como assim?! Nem vale discutir a questão do casal, porque a própria lei do país não permite doação de óvulos, mas essa opinião da antropóloga é totalmente fora de contexto. Sendo o manual de valores cristãos a Bíblia, a professora perdeu a parte em que Deus comunicou a uma mulher de 100 anos que ela seria mãe. Tudo bem que não precisou de doação de óvulos, afinal, sendo Senhor da natureza, o próprio Deus interveio para possibilitar o fato. Mas uma coisa fica clara: o fator idade nunca foi problema para maternidade/paternidade segundo os valores cristãos. 1O casal Abraão e Sara é o melhor exemplo disso!


* Notícia em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/997439-pais-velhos-perdem-guarda-de-bebe-na-italia.shtml - 27 de outubro de 2011.
1 Gênesis 21

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Games of thrones - breve leitura

A literatura não tem como seu objetivo principal a informação, a despeito disso, produz conhecimento por ser um meio de comunicação que reflete a sociedade em que os textos são produzidos. Mesmo quando o texto retrata uma época diversa daquela em que se localiza o texto, os valores se mesclam. A literatura é um meio de diversão – embora algumas escolas insistam em transformar em instrumento de tortura. E no meio da diversão há muitas informações que são assimiladas de forma intencional e não intencional. 

A produção literária contemporânea tem insistido fortemente na espiritualidade como temática[1], seja de forma ostensiva ou discretamente. O grande problema da inserção de valores do campo espiritual é quando isso é feito de forma que o leitor assimila o valor sem percepção real do que captou. A dificuldade de interpretar o texto é a grande vilã dessa história. Nesse sentido, a Análise do Discurso[2] contribui imensamente para fazer o leitor “cair na real”. O que ele leu de fato? O que está escondido entre as linhas do texto que, embora revelado, é tão obscuro?

Um exemplo interessante é encontrado em A Song of Ice and Fire[3] (As Crônicas de Gelo e Fogo – livro dois. Os trechos descrevem uma situação entre o rei – Lorde Stannis; o conselheiro do rei – meistre Cressen; e uma mulher feiticeira conselheira da esposa do rei – Melisandre. O rei, de forma inesperada, ridiculariza seu conselheiro em um banquete e se posiciona de acordo com os conselhos da feiticeira. O meistre Cressen, por sua vez, decide colocar veneno no vinho da feiticeira e partilhar a taça com ela. Ambos deveriam morrer ao ingerir o vinho, mas apenas ele morre, mesmo ela tendo partilhado da taça com ele. Interessante notar como a situação é tecida:

“Melisandre de Asshai[4], feiticeira, umbromante* e sacerdotisa de R’hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Melisandre, cuja loucura não se podia deixar espalhar para lá de Pedra do Dragão.” (p. 19)

“Como sempre, trajava vermelho dos pés à cabeça, com um longo vestido solto de seda esvoaçante, brilhante como fogo, com longas mangas pendentes e profundos cortes no corpete, pelos quais se entrevia um tecido mais escuro, vermelho-sangue, que usava por baixo. Tinha em torno da garganta uma gargantilha de ouro vermelho, mais apertada do que qualquer corrente de meistre[5], ornamentada com um único grande rubi. O cabelo não era de tom alaranjado ou cor de morango dos ruivos comuns, mas de um profundo acobreado lustroso que brilhava à luz das tochas. Até seus olhos eram vermelhos… Mas a pele era lisa e branca, imaculada, clara como leite. E era esguia, graciosa, mais alta que a maior parte dos cavaleiros, com seios fartos, cintura estreita e um rosto em forma de coração. Os olhos dos homens que a encontravam não se afastavam facilmente, nem mesmo os de um meistre. Muitos diziam que era bela. Mas não era. Era vermelha, e terrível, e vermelha.” (p. 21).

“Os olhos de Lorde Stannis estavam na sombra das suas pesadas sobrancelhas, sua boca, apertada, enquanto o maxilar trabalhava em silêncio. Rangia os dentes sempre que se zangava.
– Bobo – ele rosnou por fim –, a senhora minha esposa ordena. Dê o elmo a Cressen.
Não, pensou o velho meistre, este não é você, não é o seu jeito, sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso.” (p.23)

“Cressen tentou responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Sua tosse transformouse num terrível assobio agudo quando tentou inspirar. Dedos de ferro apertaramse em torno do seu pescoço. Quando caiu de joelhos, ainda balançava a cabeça, negandoa, negando seu poder, sua magia, negando o seu deus. E os guizos tiniam nos chifres, cantando tolo, tolo, tolo, enquanto a mulher vermelha o olhava com piedade, e as chamas das velas dançavam nos seus olhos tão... tão vermelhos.” (p. 24).

Os trechos transcritos podem ser lidos em três minutos. Mas para entender o que, de fato, seu cérebro registrou leva algumas horas. Algumas questões podem produzir reflexão e encaminhar o leitor para algumas respostas:

  1. Na pág. 19, as descrições da feiticeira incluem a quem ela serve em sua visão espiritual. Em nenhum momento é dito um nome específico, apenas termos que identificam o tal ser. Esses termos fazem intertextualidade com informações que levam ao nome por trás dos termos: “Senhor da Luz” – a Bíblia associa a luz ao Deus que se revela por meio de suas páginas e aos seus seguidores, mas não é esse Deus uma vez que mais adiante associa à sombra. O termo, então, pode ser associado a “Satanás se disfarça em anjo de luz[6]”. “Fogo” e “chama” são elementos que se complementam para a ideia de inferno, assim como “sombra” e escuridão. De quem, partindo desses aspectos, o texto realmente faz referência?

  1. Nas págs. 21 e 24, o vermelho[7] é extremamente significativo, ainda mais pela insistência na cor. Para compreender a representatividade da cor nesse texto não basta deduzir, é preciso verificar que a cor toma diversos sentidos, dependendo do contexto, o vermelho pode significar a Coca-Cola, a Ferrari ou o diabo. Para entender o uso da cor aqui é preciso se reportar aos aspectos culturais e contextuais. Para buscar a ideia do texto, é interessante ler a seguinte explicação:

“Quando claro, representa o lado masculino e quando escuro, o feminino, noturno, secreto; e os mistérios da vida. Diz-se que ele seduz, encoraja e provoca; alerta, em forma de sinais - como os de trânsito -, proíbe e inquieta. Convida a prostíbulos, transgredindo proibições e atiçando pulsões sexuais e de instintos passionais. Acredita-se que uma mulher vestida de vermelho jamais seria vista como inocente. Representante da carne e da possessividade.

O vermelho simboliza o fogo central, o ser humano e a terra. Para a alquimia, é o homem universal e o sangue da imortalidade. O chamado vermelho sagrado é a cor da alma, do coração, do esoterismo e da ciência. Relacionado a mares e oceanos, nomeia-os sob o mesmo simbolismo - o ventre, no qual vida e morte se transmutam. Símbolo de vida e morte, é a cor da guerra e da devastação (fogo e sangue), e a cor da salvação (Cruz Vermelha)”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vermelho)

A associação com morte fica mais clara no contexto, porque há uma tentativa de assassinato e suicídio; e o conselho da mulher para o rei é que ele vá à guerra.

  1. O trecho da pág. 23 precisa ser entendido pelo contexto – a informação sobre a mulher leva a concluir que é discípula de Satanás, e a esse ser é atribuída a capacidade de possessão do corpo de alguém; a expressão “ranger de dentes” também contribui para o efeito de sentido, uma vez que essa é a expressão utilizada na Bíblia para descrever o estado dos que vão para o inferno - lugar de choro e ranger de dentes. Assim, quando o velho mestre pensa “este não é você, não é o seu jeito, sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso”, não seria uma sugestão de que o rei está possuído por um ser maligno?!

  1. No último trecho, da pág. 24, há a descrição da morte do velho. O veneno fez efeito nele, mas não fez efeito na feiticeira. O ponto máximo desse trecho é a declaração de poder sobre a morte atribuído ao ser maligno que é objeto da fé daquela mulher. O velho morre achando que o Diabo não tem poder, não existe, e a repetição da música do bobo da corte é expressa em “tolo, tolo, tolo”. Não estaria o texto aí deixando clara a tolice daquele que nega o que está bem na sua frente?! O que faz a sociedade atual diante da feitiçaria, da destruição dos valores sociais?! A resposta para essa última pergunta é: “Eu nego, eu não vejo...”.

Isso é só um pouco do que pode ser extraído dos trechos acima. Há muito mais... No próximo texto, pretendo abordar um pouco mais dessa questão da espiritualidade presente na literatura contemporânea.


[1] Tenho trabalhado em uma pesquisa sobre esse assunto e espero partilhar mais alguns textos aqui no blog.
[2] Análise do discurso ou análise de discurso é uma prática e um campo da lingüística e da comunicação especializado em analisar construções ideológicas presentes em um texto. (http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%A1lise_do_discurso)
[3] MARTIN, George R. R. A fúria dos reis; trad. Jorge Candeias. – São Paulo : Leya, 2011.
[4] Cidade portuária que faz fronteira com a Terra das Sombras. Cidade notável por exportar diversas mercadorias, dentre elas Obsidiana. Rumores contam que Feiticeiros, Arcanos e Bruxos atuam livremente em Asshai. (http://www.edenpop.com/literatura/dicionario-de-as-cronicas-de-gelo-e-fogo)
[5] Do inglês Maester, uma corruptela de Mestre (Master). Titulo para os academicos e estudiosos que se formam em diversas areas da ciencia e ocultismo. (http://www.edenpop.com/literatura/dicionario-de-as-cronicas-de-gelo-e-fogo)
[6] II Cor. 11.14
[7] A palavra “vermelho” tem sua origem no latim vermillus, que significa "pequeno verme", remetendo-se à cochonilha, inseto do qual é extraído o corante carmim utilizado em tintas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vermelho)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Sobre o perdão...

Quando escrevemos filosoficamente, devemos ter o cuidado de fazer perguntas ao texto para nos certificarmos de que realmente expressamos nosso pensamento e não apenas formulamos frases de efeito. Nós precisamos também saber quem somos para que nos posicionemos de acordo com nosso sistema de valores; isso é algo que tenho insistido, exatamente por perceber que algumas afirmações não parecem andar junto com o papel social que as pessoas desempenham. 

Exemplo disso foi um texto escrito por uma pessoa que, com base nas informações que tenho, é cristã. Dizia o seguinte: “Não chego ao cúmulo de oferecer a outra face, que isso é coisa pra santo. Perdoo, mas me blindo. Se aprontou uma vez, aprontará outra. Fico na minha, me fortaleço e trato de viver cada dia melhor – nada irrita mais nossos inimigos”.

Fica claro que a pessoa está falando sobre o perdão. Nesse assunto, temos duas posições a tomar: uma baseada exclusivamente em nossa disposição de ânimo sobre a questão e a outra baseada no ensino cristão. A primeira é fruto de nosso repertório, que pode ter ou não influência cristã; a outra é a aceitação integral dos ensinos de Jesus. Quando a pessoa se posiciona como cristã e expressa uma opinião diversa daquela ensinada por Jesus e registrada nos evangelhos, temos uma grande contradição. Foi o que notei no texto citado.

A primeira frase diz “Não chego ao cúmulo de oferecer a outra face, que isso é coisa pra santo.” – ao dizer que oferecer a outra face seria o “cúmulo[1]”, além de colocar o fato de oferecer a outra face como um exagero, ainda diz que não faria tal coisa. A segunda frase confirma a anterior “Perdoo, mas me blindo[2]”. Essas afirmações vão de encontro ao ensino cristão expresso em Mateus 5.38-48[3]. Não haveria qualquer problema de alguém pensar assim, o problema é, se posicionando como uma pessoa cristã, bater de frente com o próprio fundador do pensamento cristão: Jesus Cristo.
 
A terceira frase é uma afirmação, no mínimo, preocupante: “Se aprontou uma vez, aprontará outra.” – Por um lado é uma afirmação redundante se pensarmos que estamos sujeitos a errar e voltar a errar, afinal, já foi dito que “herrar é umano”(sic); por outro lado, fica subentendido que, ao afirmar isso, a própria pessoa jamais cometeu erro algum contra outras pessoas. Sim, porque o rigor do tratamento indica que a própria pessoa não dá mais chance a quem errou; dificilmente alguém gostaria de ser tratado com esse rigor. No final do texto: “Fico na minha, me fortaleço e trato de viver cada dia melhor – nada irrita mais nossos inimigos.” – O texto parece indicar que a pessoa que comete um erro contra outra se torna inimiga. Se tomarmos isso como princípio para nossas vidas, viveremos isolados; começaríamos eliminando nossa família. A menos que apliquemos isso apenas com os de fora de nossa família. Mas no trabalho ou em qualquer outro ambiente também seria um problema. Sempre precisamos uns dos outros em algum momento... Mesmo aquelas pessoas que já aprontaram conosco! E quem nunca errou que atire a primeira pedra!!!



[1] Excesso, acréscimo não admissível. (Houaiss versão on line)
[2] Tornar(-se) resistente ou imune a ações ou influências danosas; proteger(-se), guardar(-se). (Houaiss versão on line)
[3] Bíblia