Um dos maiores desafios para o leitor brasileiro - se não for para qualquer leitor - é aprender a interpretar textos, levando em consideração o aspecto discursivo – ou seja, o que está escondido nas entrelinhas... Ou revelado descaradamente nas linhas...
Um colunista resolveu mostrar sua opinião a respeito de palavras violentas sobre um assunto que deveria sensibilizar as pessoas, mas a sua forma de expressar deixa mais dúvida do que simpatia quanto aos seus argumentos. A menos que o leitor já esteja com opinião formada a favor do escritor.
Vejamos o título: O câncer de Lula me envergonhou – Como assim? Desde quando uma doença de uma pessoa envergonha outra?! Ah! Sim. É apenas uma frase sensacionalista para despertar a curiosidade e o desejo de ler o que ele escreveu. O bom leitor já vai perceber que não haverá tanta indignação assim, já que o mais importante não é o assunto tratado, e sim a leitura.
A indignação: Senti um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar. O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo. – Aqui o leitor até se solidariza, afinal, ninguém merece ser tão enxovalhado só porque está doente. “Vergonha” e “enjôo” não seriam exatamente os sentimentos próprios que alguém descreveria diante de tal fato, mas que seja. A questão intrigante surge no trecho seguinte.
O exemplo das ações e palavras ultrajantes: Centenas de e-mails pediam que Lula não se tratasse num hospital de elite, mas no SUS para supostamente mostrar solidariedade com os mais pobres. É de uma tolice sem tamanho. O que provoca tanto ódio de uma minoria? – Não fosse o assunto tão triste, seria de chorar de rir. Que ironia é essa? Lula se tratar no SUS é uma tolice sem tamanho, que seria resultado de muito ódio de quem deseja isso? Tolice, por quê? Ele é melhor que todos os que se tratam no SUS? Foi por ódio da população menos favorecida que ele manteve o SUS?
Aspecto político: Lula teve muitos problemas --e merece ser criticado por muitas coisas, a começar por uma conivência com a corrupção. Mas não foi um ditador, manteve as regras democráticas e a economia crescendo, investiu como nunca no social. – Qual era o assunto mesmo? Ah, tá... Ele estava falando de comportamento humano diante de uma tragédia. Por pouco, pensamos que era uma avaliação política...
O assunto retorna?: No caso de seu câncer, tratou a doença com extrema transparência e altivez. É um caso, portanto, em que todos deveriam se sentir incomodados com a tragédia alheia. – “Transparência” e “altivez”... Ele fala da doença ou do comportamento político? Quanto ao “todos deveriam se sentir incomodados com a tragédia alheia”, já deu para perceber que “todos” é um número muito grande para um país que revela desigualdade em muitas áreas, especialmente no sentido de valor do ser humano... Precisamos mais do que ideias para mudar isso!
Pegando pesado: Minha suspeita é que a interatividade democrática da internet é, de um lado um avanço do jornalismo e, de outro, uma porta direta com o esgoto de ressentimento e da ignorância. – Esse final é apoteótico. De fato, há muito lixo na internet, escrever opiniões agressivas é só uma ponta do iceberg. Mas quem se importa quando o ofendido não é da “elite”?!
Propaganda do propósito: Isso significa quem um dos nossos papéis como jornalistas é educar os e-leitores a se comportar com um mínimo de decência. – Seria esse o objetivo desse artigo? Parece que não, porque um bom número de leitores se revoltou com os comentários, que em lugar de educar, descarregou, educadamente, a raiva pelo mau comportamento desses que precisam de educação.
Crédito: Gilberto Dimenstein, 54, integra o Conselho Editorial da Folha e vive nos Estados Unidos, onde foi convidado para desenvolver em Harvard projeto de comunicação para a cidadania. – Essa informação é uma faca de dois gumes: por um lado, coloca o autor como alguém importante – afinal ele é o cara que está em Harvard, ensinando cidadania, sabe do que fala; por outro lado, deixa o leitor pensando por que ele está lá quando o Brasil está tão “desconfigurado” no exercício da cidadania.
Como disse o sábio, elas justificam ou condenam...
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gilbertodimenstein/999070-o-cancer-de-lula-me-envergonhou.shtml.